Chovia muito no último dia em que vi meu pai. Eu estava com oito anos de idade e padecia na cama com 40ºC de febre. Amígdalas.
Meus pais tinham se desquitado havia já alguns meses. Eu, meus irmãos e minha mãe morávamos num apartamento de um quarto na Assis Brasil. Ele foi nos visitar e deparou comigo tiritando sob a coberta.
Lembro com nitidez daquela noite, dele parado à soleira da porta do quarto, de pé, olhando-me, e minha mãe ao lado, com o papel da receita do médico na mão. Ele tomou a receita e ofereceu-se para ir à farmácia. Deu as costas para o quarto, mergulhou na escuridão do corredor e foi embora. Nunca mais o vi.
Logo depois ele se mudou para outro Estado, no Centro-Oeste, e lá construiu o resto da sua vida. Um dia de 2001 alguém me disse:
- Teu pai morreu ontem.
E eu não sabia o que sentir.
Não conto essa história com ressentimento. Porque acho que entendo o que aconteceu com meu pai, naquela noite de chuva. Ao sair do apartamento, ele de fato tencionava comprar os remédios.
- Vou comprar dois de cada! - recordo que disse.
Mas meu pai era alcoolista. Na rua, deve ter cruzado pela porta de um bar, ou com um amigo, e parou para beber. Quando deu por si, era tarde para ir à farmácia e tarde para desculpar-se. Continuou bebendo, gastou todo o dinheiro e, no dia seguinte, envergonhado, preferiu não dar notícias. Assim passou-se um dia, e outro, e mais outro. De repente, havia transcorrido tempo demais para voltar atrás ou para dar explicação. Meu pai não enfrentou a própria vergonha, isso não é incomum. Acontece. É compreensível.
O que sempre me enfeitiçou nessa história, que, afinal, é parte da minha própria história, não foi o detalhe da desistência do meu pai. Não foi o abandono. Foi o momento em que meu pai decidiu entrar no bar. Uma decisão tão aparentemente irrelevante, tão fácil de ser tomada, dar dois passos da calçada em direção a uma porta aberta, e, ao mesmo tempo, uma decisão tão crucial. Fico pensando em como a vida é repleta dessas pequenas deliberações que podem alterar rumos e mover destinos. Fico pensando em todas as palavras espinhosas não ditas, nas vezes em que o sinal amarelo não foi cruzado, em que o gatilho não foi apertado, em que não liguei para ela, nas chances que deixei passar, e nas vezes em que fiz tudo isso, por bem ou por mal. Um passo, uma palavra, um gole, um pedido de perdão que não foi feito, e tudo muda. Mudou para meu pai. Mudou para mim. Neste fim de ano, o que desejo a todos é isso, que o passo seja certo, que a palavra seja macia, que o gole valha a pena, que o perdão seja pedido. E concedido.
*Texto publicado na sexta-feira,
28/12/2007,
página 3 de Zero Hora
Pode até ser filosofia barata, mas coloca a gente pra pensar =)
ResponderExcluirLegal o blog!
Não tem como não ler isso, recordar, arrepiar os cabelos e pensar "como bons tempos aqueles", Seco, sinto saudade de tudo cara, isso já se passaram 15 anos ou mais e a gente jamais esquece do que passamos juntos. Pena que todo mundo tem traçado um caminho na vida que muitas vezes nos fazem seguir rumos diferentes e nos afastando. Mas uma coisa é certa, amizade igual a nossa não se apaga. E tem mais, verdadeiros amigos você constroi com o tempo e desde a infancia. Depois disso começa a ficar muito dificil, porque a vida acaba nos cercando de pessoas que se revelam caixinhas de surpresa. Crecemos juntos, formamos nosso carater juntos e semelhantes, por isso nossa amizade vive aqui no peito, e cada vez que leio algo e falo com alguem o sentimento de saudade destes tempos e dos verdadeiros amigos que eramos aflorece. Abraços
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